QUESTÃO DE TEMPO

“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”

Clarice Lispector 

Quando Jean-Charles Naouri, presidente do conselho de administração e CEO do Grupo Casino, convidou-me para ir a Paris discutir sobre a contenda com o grupo do Abilio Diniz, ele tinha uma estratégia definida que era uma tragédia, na minha visão. Convencido de que o grupo contrário mandava no governo, o que era uma desinformação plantada, cuidadosamente, pelo adversário, a determinação era para abrir guerra contra todos, contra o governo inclusive. Cheguei com ares mineiros e, em 8 horas de conversa, convenci-o de mudar os planos. 

Homem de muita determinação e com grande capacidade de decisão, Jean-Charles, abandonou o que estava definido e mudou 100% a rota. Nós tínhamos uma boa causa e não optamos pelo combate, salvo o inevitável: o jurídico. Ganhamos por termos um bom direito. Além disso, foi uma grande vitória do bom senso e da definição, na hora certa, do caminho a ser trilhado. 

Como advogado criminal, que é a essência da minha advocacia, acompanho os desdobramentos das investigações sobre o ex-presidente Bolsonaro. Sempre disse, desde quando ele era poderoso, que o Bolsonaro é um serial killer. Comete crimes em série. Das mais diversas espécies. Tudo o que eu falava há tempos tem se confirmado de maneira até assustadora. O ex-presidente passeia com desenvoltura inigualável nos mais diversos artigos da legislação penal. É, sem dúvida alguma, um candidato a um número inusitado de condenações, até com certo constrangimento para quem foi chefe de Estado. Nem os delinquentes comuns conseguem competir com ele. Uma vergonha para a política brasileira. Como alguém desse naipe chegou à Presidência da República? Um mistério a ser estudado e que pode ser creditado, em parte, ao crescimento da extrema direita em várias partes do mundo.

Quando me recordo do episódio do Casino, e falo sobre estratégia, é porque vejo esse grupo que assaltou o país enfrentar as diversas frentes de investigação sem, aparentemente, nenhum planejamento jurídico. Eles são criminosos contumazes e continuam a falar para uma bolha que sustenta o fanatismo bolsonarista. Não percebo uma estratégia jurídica de enfrentamento ao caos que se anuncia. Continuam a falar para uma bolha que sustenta a extrema direita e que continua acreditando que o Bolsonaro é honesto e ainda manda no país. 

Nunca imaginei ser capaz de presenciar uma lavagem cerebral de tal ordem. Nas hostes bolsonaristas, o mundo é outro: a terra é plana e as mentiras inventadas no período do golpe vingaram. Viraram verdades encomendadas. Mesmo presos e condenados a penas altíssimas, eles estão certos de que os “homens de bem” vão assumir o controle do país. Lembrando-nos do grande Nelson Rodrigues: “Por trás de todo paladino da moral vive um canalha”.

Costumo dizer, em debates e artigos, que o tempo do Poder Judiciário não é, necessariamente, o tempo da imprensa e do cidadão comum, com suas ansiedades e cobranças naturais. Em um processo penal democrático, é bom que outro seja mesmo o tempo. Afinal, o devido processo legal precisa do respeito à ampla defesa, ao contraditório e à presunção de inocência. Repito sempre: ganhamos da barbárie, mas não podemos nos submeter aos métodos dela, senão nós teremos perdido a guerra civilizatória.

A Polícia Federal apresentou mais um relatório na frente de investigação sobre os crimes cometidos pelo Bolsonaro e pelos membros da sua organização criminosa. Agora, sobre o rumoroso caso das joias. Um trabalho técnico, profissional e competente. As teias vão se embaralhando de maneira harmônica. Com uma proficiência admirável, o cerco vai se fechando de um jeito que as denúncias criminais serão uma consequência lógica de tudo o que, brilhantemente, foi apurado. Penso que o processo penal será inafastável e haverá condenação a penas altíssimas, o único caminho dentro das linhas até então traçadas.

No entanto, até ontem, os líderes bolsonaristas insistiam em tentar politizar aquilo que nada mais é do que uma questão criminal. Veicularam na mídia uma tese esdrúxula, insistindo que a denúncia criminal, que fatalmente virá – pela abundância de provas materiais e evidente caracterização das autorias -, só poderá ser apresentada após as eleições municipais. Ou seja, defendem uma politização do Ministério Público a ponto de escolherem o melhor momento político para a Procuradoria agir e oferecer a acusação.  Seria a prova inequívoca da instrumentalização do Poder Judiciário: o acusado escolher a data em que será processado de acordo com suas estranhas e duvidosas conveniências.

Cabe a nós defender um processo penal democrático. E, claro, dar ao Bolsonaro e aos seus asseclas membros da organização criminosa – sejam senadores, deputadas, generais e empresários – todos os direitos e garantias constitucionais. Que sejam respeitados a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal. Deixem que a estratégia deles continue sendo falar para essa bolha que vive em um mundo paralelo, no qual a Terra é plana e o Bolsonaro ainda é um político poderoso. Depois da condenação, eles terão que cumprir pena e terão muito tempo para continuar pregando que são honestos e que tudo não passou de uma estratégia da esquerda para derrubar o mito. É só uma questão de tempo.

Lembrando-nos da música Tá Escrito, do Grupo Revelação, que cantávamos na campanha:

“Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé

Manda esta tristeza embora

Basta acreditar que um novo dia vai raiar 

Sua hora vai chegar.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

O texto foi escrito por Kakay ao Poder 360.

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