SEM FALSOS HERÓIS

“Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências.”
Pablo Neruda
Escrevi, nesta semana, sobre a prisão do general Braga Netto – artigo “A prisão que
liberta”. Ressaltei que o encarceramento de um general 4 estrelas por determinação de
um tribunal civil, o Supremo Tribunal Federal – o que nunca tinha ocorrido antes na
história -, demonstra, em certa medida, o grau de estabilidade democrática das
instituições. As Forças Armadas saíram fortalecidas por terem feito o óbvio: aceitado
cumprir a Constituição. Ou seja, no país, ainda é preciso ressaltar a relevância, muitas
vezes, daquilo que simplesmente ocorre dentro da normalidade.
Até este momento, estamos no meio do turbilhão que foi a tentativa de golpe de Estado.
É necessário termos uma visão global do momento. A tentativa se deu após 4 anos de
um governo fascista. Após não, durante. A ideia do golpe, de subverter a ordem
democrática, foi alimentada criteriosamente durante toda a gestão Bolsonaro.
O relatório de 884 páginas da Polícia Federal, que indiciou o ex-presidente e mais 36
pessoas, amarra bem as ações desde 2019.
Mas ainda há muitas pontas soltas e que continuam a preocupar. A coordenada ação
para desmoralizar as urnas e o Poder Judiciário tinha como pano de fundo fortalecer a
estratégia golpista. Contavam com o auxílio luxuoso de intelectuais que se prestaram a
defender a esdrúxula tese de que as Forças Armadas seriam um poder moderador e
tutor da Constituição.
A ideia era mesmo, ao dar o golpe, apresentar o grupo golpista
como salvadores da pátria. Eles estariam se sacrificando para salvar o Brasil e, para tal,
era necessário ter a força militar a governar o país. Ousados, irresponsáveis,
gananciosos e atrevidos.
Cada vez se delineia a necessidade de amarrar todas as pontas para poder minimizar
o risco da metástase na nossa sociedade. Aparecem agora indícios daquilo que era
facilmente presumível: o financiamento golpista vinha, em parte, do agronegócio, de
grupos políticos partidários de extrema direita e da tradicional banda podre da oligarquia
brasileira. É necessário ter a coragem e a lucidez de enfrentar todos os envolvidos. Sob
pena de ainda estarmos alimentando um golpe, por enquanto, bem enfrentado.
Algo preocupa de maneira especial. Assusta a forma com que parte das Forças
Armadas se posicionou. E olha que não falo da parte golpista e que sofrerá as
consequências com a desonra e o cárcere. Refiro-me aos que resistiram e cumpriram a
Constituição. Ainda há, no meio da sociedade e de parte dos formadores de opinião, a
história contada dando ares de herói para quem cumpriu o seu dever. Como se eles
tivessem adotado o papel sim de tutores da pátria. Ou seja, o que sempre criticamos na
visão enviesada da interpretação do artigo 142 da Constituição acabou se fortalecendo
sob o ângulo dos que cumpriram o papel constitucional.
É preciso sim dar o devido valor a todos os que resistiram e estão resistindo. Repito,
ainda não acabou. Mas é importante lembrar que mesmo os militares de alta patente
que não aderiram ao golpe, muitos não enfrentaram seus superiores, ou mesmo
enquadraram seus subalternos. Não houve prisões em flagrante contra os que se
insurgiam. O golpe ficou rondando e quicando diante de quem tinha o dever de subjugálo.
É simples? Claro que não. Mas é necessário não criarmos salvadores da pátria que
fortaleçam a ideia de que, no fundo, as Forças Armadas são mesmo o poder moderador
que Bolsonaro quis fazer acreditar. Estamos no rumo certo. É só continuar resistindo.
Sem essa de falsos heróis.
Lembrando-nos do velho Pessoa, na pessoa de Ricardo Reis:
“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe
quanto és no mínimo que fazes.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay