Vida e liberdade, por Kakay

“Não há refúgio, e o terror aumenta.

É tal e qual o drama aqui na sala:

A luz da tarde em agonia lenta,

E a maciça negrura a devorá-la.

Dor deste tempo atroz,

sem refrigério,

Eis os degraus do inferno que nos restam:

Morrer e apodrecer no cemitério

onde fantasmas, como eu,

protestam.”

Miguel Torga

 

Em um momento em que o país cuida, com toda razão, quase única e exclusivamente da necessidade fundamental e imperiosa da vacina, uma notícia de pé de página chama a atenção. O ex-ministro Sergio Moro ganharia hoje uma eleição para a Presidência da República. Apenas ele, segundo a matéria, poderia enfrentar e derrotar o atual Presidente. É evidente que ninguém está com cabeça para qualquer outra questão que não seja a tentativa de salvar vidas e de propiciar ao brasileiro o ar que está sendo obstado pelo negacionismo e obscurantismo. O que me leva a refletir sobre essa hipótese –ainda distante– das próximas eleições é imaginar que esse ex-juiz está no cerne, na raiz deste desgoverno que hoje nos sufoca, nos aniquila. Foi um projeto de poder, coordenado pelo ex-juiz de Curitiba que chefiava criminosamente a força-tarefa, que propiciou a chegada deste grupo ao poder. Se, após ter assumido o cargo de Ministro da Justiça, houve um rompimento entre eles, isso nada mais é do que uma briga de quadrilha.

Certamente o agora ex-Ministro aposta no caos para se posicionar no tabuleiro do jogo de poder. Caos que ele tem que ser chamado a explicar. Afinal, qual a real importância, qual papel o Moro exerceu nas últimas eleições? É sempre bom ler Mário Quintana:

“O passado não reconhece seu lugar, está sempre presente.”

O poder judiciário é um poder inerte, só se manifesta quando provocado. E o poder judiciário não tem faltado ao país. Neste trágico momento de negação à vacina, de ausência do Ministro da Saúde, é na segurança jurídica e no descortino do Ministro Ricardo Lewandowski que o Brasil se ampara. Sem alardes, sem fanfarronices. Também da lavra do Ministro Lewandowski a determinação de que todas as mensagens referentes a um determinado lapso temporal e obtidos por hackers devem ser entregues à defesa técnica do ex-Presidente Lula. E todos estes documentos chegam à defesa com o selo da validade processual. Poderão ser manuseados e usados como prova de defesa.

É claro que quando falta o ar para arejar os pulmões nada mais tem importância ou sentido. A vida é, e deve ser, a prioridade absoluta, a primeira razão de existir. Mas sabemos todos que não existe apenas uma única frente de batalha. A liberdade vem disputar junto com a vida os espaços que puder ocupar. O ar que nos falta nos pulmões e que nos mata pelo não enfrentamento científico do vírus é também o ar que pode levar a julgamentos justos e com plenitude de defesa. Um direito, evidentemente, não exclui o outro. Vamos de João Cabral de Melo Neto:

“Sem bala, relógio,

ou a lâmina colérica,

é contudo uma ausência

o que esse homem leva.

por fim a realidade

prima, e tão violenta

que ao tentar apreendê-la

toda a imagem rebenta.”

Trago em mim o olhar, às vezes viciado, da ampla defesa e da paixão pelo respeito ao devido processo legal e à Constituição. E cabe a todos os operadores do direito cobrar para que a pandemia não sirva de pretexto para o não julgamento de relevantes e decisivos processos que estão parados. No caso específico dos excessos cometidos pela força-tarefa, especialmente a de Curitiba, a postura independente e corajosa do Procurador-Geral, ao priorizar a continuidade das investigações, mas dando mais transparência aos atos do próprio Ministério Público, serve como alerta no sentido de que o ar que falta nos hospitais, cuja ausência mata, não pode fazer falta também nos tribunais.

Publicação Original: Poder 360

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