Quase real

“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes,
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”

Fernando Pessoa, na pessoa de Ricardo Reis

 

De repente, me vi a escrever sobre uma estranha síndrome de abstinência quando do apagão do WhatsApp. Revelando certo alívio pela simples hipótese de não me sentir tão prisioneiro, ainda que por poucas horas, e não por definição própria, desses engenhos que nos subjugam. E aí, comecei a pensar sobre este mundo no qual entramos sem raciocinar e no qual nos entregamos sem limites, ou quase sem.

Quando as milhares de mensagens diárias passam a ser algo natural, é porque perdemos a mão, deixamos de ter o controle mínimo e necessário das nossas vontades. Talvez seja hora de socorrer-me ao velho Eric Laurent, meu psicanalista, para introduzir esse tema tão instigante quanto desafiador para mim.

Passei a participar de vários grupos como se eu fosse só um observador. E a identificar os meus companheiros nesses espaços que me incluem, sem, normalmente, nenhuma consulta prévia. Alguns deles eu gosto, me sinto bem, me divirto e tenho até certo pudor em me manifestar. Leio. Olho. Rio. Emociono-me. Aprendo. Outros, eu desprezo, mas, como não são bolsominions, não tenho coragem de sair. Como fiz um corte, quase uma promessa, de não conviver com esses fascistas, acabei alargando a minha paciência e compreensão para outras tribos, para os babacas, os desinformados e os amantes de autoajuda. E esses são terríveis, os pretensiosos e os donos da verdade.

Muito preocupante acordar e ter quase mil mensagens que parecem ter que ser lidas. Elas ficam lhe esperando. A maioria não lhe diz respeito, não diz nada, ou quase nada, da sua vida. Mas a curiosidade, o vício e a dependência fazem com que você leia e até responda algumas delas. Nós que tínhamos uma noção do ridículo, da amizade, da literatura, da reflexão e da leitura de poesia estamos hoje reféns de uma tecnologia viciante e burra, pois não nos permite ser minimamente reflexivos e com algum aprofundamento sobre os temas. Somos tragados por esse enorme gargalo de mediocridade que impera nas tais redes sociais.

E, de certa maneira, especialmente durante o isolamento da pandemia, esse meio virtual transformou nossa maneira de nos relacionarmos. A falta do abraço e a solidão angustiante nos fizeram sentir cada mensagem como se fosse um carinho e uma demonstração de afeto.

Já é hora de tirarmos a máscara de alguns grupos e resgatarmos o tempo, exageradamente longo, desse relacionamento não real. A essa altura da vida, poder deletar alguns grupos pode ser a melhor maneira de nós nos sentirmos mais inteiros e nos situarmos onde realmente queremos estar. E deletar pode também ser visto como um ato de carinho. Se não com os participantes do grupo, pelo menos com você mesmo. Permita-se.

Mire-se no velho Leão de Formosa, no poema O Búzio e a Pérola:

“Aperfeiçoa-te na arte de escutar:
Só quem ouviu o rio pode ouvir o mar.”

 

Publicação Original: O Dia

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