Serial Killer: impeachment já, por Kakay

“A natureza é a diferença entre a alma e Deus.
Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.”

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

 

Quando o Bolsonaro assumiu a presidência e começou a fazer exatamente aquilo que ele havia prometido a vida toda – apologia à tortura, misoginia, perseguição às minorias, tentativas de fechamento do Congresso e do Supremo, desarme da cultura, do meio ambiente, dos direitos humanos e um elogio à barbárie institucionalizada, enfim, ele sendo ele na essência, só que com poder– comecei a receber vários pedidos para escrever sobre o impeachment. Neguei todos.

Entendo que é muito grave a banalização de um instituto extremamente traumático. O Brasil demonstrou certa maturidade ao passar por duas destituições em tão pouco tempo. E no último, até o vice-presidente que assumiu, em raro momento de sinceridade, reconheceu que foi um golpe. Não restam dúvidas de que não houve crime algum por parte da ex-presidente Dilma.

O afastamento do presidente da República se dá por um processo político-jurídico no qual as condições políticas são o maior vetor da definição da oportunidade. Um governo forte e poderoso no Congresso não se preocupa com a hipótese de impeachment. Um governo fraco e impopular, mas que seja corrupto e tenha entregado suas vísceras aos grupos que dominam o Congresso, também não se preocupa. Recorro-me ao mestre Rainer Maria Rilke:

“Mas a escuridão tudo abriga,
Figuras e chamas animais e a mim,
E ela também retém
Seres e poderes.
E pode ser uma força grande que perto de mim se expande.
Eu creio em noites.”

As tessituras das inteligências que pensam dominar o país, muitas vezes, não passam nem perto do termômetro que existe num pequeno grupo que coloca a água para ferver ou que resolve servir um chá gelado. O impeachment não é um jogo para amadores. E quem bota a banca está sempre na posição de regular as apostas. Mas, como em todo jogo, existem o imponderável, a surpresa, as traições e, principalmente, os interesses que mudam de lado.

Quando Bolsonaro resolveu assumir, orgulhosamente, que ele é o senhor da morte, o cultor da dor, o responsável pelo caos que o país enfrenta na crise sanitária, o gozador brincalhão da desgraça alheia e o autor, como um serial killer, de crimes de responsabilidade em série, ficou claro que o impeachment era uma necessidade. Urgente.

É bom nos guiarmos com a poeta mexicana Juana Inês de La Cruz:

“Toda opinião sua é insana;
Pois a que mais se recata,
Se não vos admite, é ingrata,
Se vos admite é leviana.”

E nem me manifesto aqui sobre a extensa série de crimes comuns que dormitam na PGR (Procuradoria Geral da República) e que também serviriam de pretexto para o afastamento do cargo. O que me impressionou foi a capacidade oceânica de cometer crimes de responsabilidade.

A partir da obviedade, comecei a escrever, a levantar a questão em debates e a me pronunciar, enfim, sobre a verdadeira necessidade de se afastar o presidente. Mesmo sabendo da quase impossibilidade, mas cumprindo um papel de resistência e, principalmente, de alerta. A série de crimes de responsabilidade perpetrados leva a um descrédito quase absoluto dos outros Poderes responsáveis pelo equilíbrio constitucional. Um presidente da República que se porta como o atual é um desafio às instituições.

Nesse meio tempo, resolvemos enfrentar a máxima de que só existe a possibilidade de impeachment se a popularidade do presidente estiver muito baixa, sem o apoio do famoso “centrão”, com milhões de pessoas nas ruas e amparo da grande mídia, enfim, temos um caso acadêmico de impedimento.

E por que então lançar uma campanha ousada, corajosa e oportuna de um “superpedido” de impeachment? Impressiona o leque de apoio de diferentes matizes. Vários partidos políticos e muitas entidades assinam o pedido, uma representação que impressiona pela detalhada descrição de, pelo menos, 23 crimes de responsabilidade definidos na Constituição.

É o 1º caso, no mundo, de um presidente da República que se porta como um serial killer em matéria de impeachment. Os argumentos jurídicos estão sobejamente demonstrados. Nem nos cabe aprofundar. Qualquer estudante de direito, ou alguém do povo, pode citar alguns casos clássicos de crime cometido pelo presidente. O que me fez assinar o pedido de impeachment como advogado, atendendo ao convite dos craques Mauro Menezes e Marco Aurélio Carvalho, é a certeza de que nós todos precisamos ter um lado na história.

Nós estamos esgotados. O Brasil chegou à beira do precipício e se jogou. Moram comigo, de maneira silenciosa, mais de 500 mil brasileiros que foram vencidos pelo tratamento criminoso do vírus. Acompanham minha angústia um indeterminado número de pessoas que choram a falta desses 500 mil, sem contar os que ficaram sequelados e os que vivem uma dor indefinida. Foi por eles que eu assinei.

Tenho escrito, há tempos, sobre a necessidade de rever os poderes imperiais dos presidentes dos Três Poderes, especialmente o do presidente da Câmara, que pode dar prosseguimento –ou não– ao pedido de impeachment. Todo o grande trabalho realizado pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) será jogado numa lata de lixo; chique, lata de ouro, mas que não restará nenhuma efetividade. Ainda assim, assinei como advogado. Tem momentos na vida de cada cidadão que não se joga somente com as cartas que estão postas. É necessário se apresentar à vida, não agachar na hora do tapa.

Esse pedido de impeachment é uma oportunidade que nós estamos nos dando de sermos felizes. Se for difícil ser feliz, nós teremos tido a chance enorme de ter tentado. Para mim, vale a vida. Volto-me a Octavio Paz, no poema Visitas:

“Através da noite urbana de pedra e seca
O campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
Com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.
O céu do campo também entra,
Com o seu cesto de joias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
Estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.
Na árvore pendem todas as palavras formosas
Que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago.
Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
Ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?”

Publicação Original: Poder 360

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