A falta do abraço, por Kakay

“Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;
talvez como a camisa
vazia, que despi.

Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita o verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.”

João Cabral de Melo Neto

 

Todo final de ano, as pessoas se permitem sonhar e fazer planos de dias melhores. É natural que, inconscientemente, cada um se sinta na expectativa de mudar e esses sonhos sonhados acordados embalam uma esperança de um novo ano com mais alegria e mais prosperidade. É uma época em que um certo sentimento coletivo cria uma quase certeza de que, mesmo com todas as dificuldades, o mundo será muito mais acolhedor. O homem precisa disso, precisa crer que o amanhã será um outro dia e que nesse outro dia o sol vai brilhar para todos. Para ele, inclusive.

É uma maneira, quase uma fuga, que embala os sonhos e os desejos coletivos. Na individualidade e até na solidão do dia a dia, as pessoas fazem planos, os mais diversos, que abarcam ambições íntimas. E são esses quereres secretos que, muitas vezes, alimentam-nos. Se não houvesse essa hipótese de acreditar que o mundo vai mudar, não existiria a necessidade de contarmos os dias como fazemos: por semanas, meses e anos. Seria só um dia após o outro e amanhã seria sempre só um amanhã a mais. Mas não, vivemos a ilusão dos dias contados em semanas, meses e anos. E um ano que se finda nos leva à reflexão do que passou, do que fizemos e do que deixamos de fazer, que sempre é inquietante. Nesse balanço sobre o realizado e o desejado é que a maioria desenha para si mesmo os motivos para impulsionar uma permanente luta que nos permite avançar.

Para resistir nos momentos difíceis, é imprescindível que a pessoa mantenha a crença no que ela almeja. É criar sonhos, permitir-se. Uma das belezas da vida é a criatividade com que cada um se recicla a cada período. Vivemos uma tragédia sanitária na qual a proximidade da morte, da dor e do isolamento social fez a todos um cerco invisível e testou, de maneira até cruel, a nossa capacidade de resistência.

Um elo de solidariedade se fortaleceu e a preocupação com o outro foi uma tônica que deu ares de relativa humanidade às pessoas. Ver o outro sob o olhar dele, tentar se colocar no lugar dele. Escutar. É emocionante acompanhar a dedicação de todos os agentes de saúde, nas mais diversas áreas, juntamente com profissionais que trabalham, muitas vezes, anonimamente em dedicação sobre-humana para salvar vidas. E para inventar outras vidas e outras formas de viver.

Nunca se valorizou tanto o detalhe. Na ausência do abraço amigo, envolvente, nós aprendemos a respeitar a distância e, ainda assim, tentamos nos sentir protegidos e próximos. Não abraçar nossos velhos pais ou nossos filhos talvez seja a maior falta que esta praga nos legou. E o sorriso escondido pela máscara teve que ser substituído pelo olhar, e esse olhar passou a abraçar, a fazer carinho, a sorrir e até a falar. Basta querer ver e ouvir.

Numa cultura como a nossa, a falta que faz a demonstração do afeto pode mudar o comportamento e as pessoas. Saudades dos bares, das torcidas enlouquecidas nos campos de futebol, das rodas de samba, da aglomeração do carnaval, da descontração de falar pegando e até aqueles chatos que dão tapas nas costas fazem falta. Como lembrava nosso Mario Quintana:

“Abraçar é dizer com as mãos o que a boca não consegue, porque nem sempre existe palavra para dizer tudo”.

Este é um sentimento que nos anima a todos, o da solidariedade de cada gesto contido. E é interessante que, sem nenhuma culpa, também temos que aprender a cultuar e a respeitar algumas reações adversas, humanas, demasiadamente humanas. Devemos exercer o dever cívico e alimentar o direito de odiar, menosprezar, querer o mal, rezar pedindo raios e trovoadas contra este canalha que preside o Brasil.

Se não extravasarmos nossa indignação, nós não conseguiremos fazer o enfrentamento necessário. Esse ser abjeto que cultua a morte, despreza a vida, faz elogios a torturadores e despreza a dor indizível da tortura serve, contraditoriamente, para nos mostrar o quanto somos humanos, imperfeitos. É demonstrando nosso desprezo por esse pústula que cada um exerce sua cidadania e o seu lado mais humano. Como ensinou Rubem Alves:

“Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.”

Enfrentar sem medo esses seres de esgoto, que vivem no submundo, é também uma maneira de demonstrar amor e compaixão. É demonstrar respeito à humanidade. Um crápula como este presidente não pode ser tratado com respeito, com a civilidade que tratamos nossos adversários políticos, nem mesmo com desprezo. Ele é um inimigo. Vil. Assassino. Vivemos o inferno perfeito: o vírus e o verme. Quem não se posiciona vira cúmplice. A omissão terá que ser cobrada.

Por isso, neste final de ano em que ainda alimentamos a criança que existe em cada um de nós e que as ilusões da infância foram resgatadas no Natal, vamos nos permitir ser inteiros. A nossa opinião, a nossa luta e as nossas posturas mudam a realidade. Para fazer parte de um mundo mais justo, mais igual e mais solidário, é necessário que nós estejamos dispostos a tirar a máscara da hipocrisia e a abraçar a causa do humanismo. E a resistir. Essa é uma forma madura de amar. A covardia da omissão não é amor, é apenas cumplicidade. Fechemos com Pessoa:

“Para ser grande
Sê inteiro:
Nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago
A lua toda brilha
Porque alta vive.”

Publicação Original: Poder 360

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