A hora do Senado, por Kakay

“Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
(…)
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas.
(…)
Mas somos milhões de homens comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonhos e margaridas.”

Ferreira Gullar, no Poema Homem Comum

 

Muito triste ver o que aconteceu com o Brasil. O país perdeu a sua essência. Deixou a alma se esvair e, neste momento, ronda como um moribundo sem rumo e sem identidade. Não há quem, no mundo, nos respeite. Viramos pária internacional e motivo de chacotas. Quando a cara do país passa a ser o humor macabro, ou escrachado, ou mesmo o desprezo e a pena, é porque o poço chegou ao fundo.

Num país presidencialista, a força, até simbólica, do presidente da República é muito significativa. Quando nos defrontamos com um inepto, sádico, cultor da morte, profundamente ignorante, inculto e banal a presidir o país no meio da maior crise sanitária de todos os tempos, a catástrofe se faz presente.

E os exemplos de barbárie vão se acumulando e testando a capacidade de indignação e reação das pessoas. O descaso com a inteligência, com o cuidado ao próximo, o desdém com o pensamento do outro, tudo passa a ser a regra do dia a dia. Recorro-me, mais uma vez, a Miguel Torga no poema Reminiscência, no livro Penas do Purgatório:

“Prossegue o pesadelo.
Feliz o tempo, que não tem memória!
É só dos homens esta outra vida dá recordação.
E tão inúteis certas agonias
Que o passado distila no presente!
Tão inúteis os dias
Que o espírito refaz e o corpo já não se sente!
Continua a lembrança dolorosa nas cicatrizes.
Troncos cortados que não brotam mais
E permanecem verdes, vegetais, no silêncio profundo das raízes.”

Um general da ativa que é ministro-chefe da Casa Civil diz, sem vergonha, numa reunião do Conselho de Saúde Suplementar, que tomou a vacina contra a covid-19 escondido para não contrariar o chefe dele, o capitão que preside o país! E as pessoas não têm tempo de ficarem perplexas.

Vejam que piada de péssimo gosto: um homem que ocupa um posto relevante na estrutura de poder assume que agiu como uma criança medrosa e, para vergonha de todos, diz que não tornou público o ato de vacinar pois o chefe dele não gostaria. E deixa claro que foi escondido por orientação do Palácio do Planalto.

Ou seja, o fascista que ocupa a presidência, negacionista, que não comprou as vacinas nas diversas vezes em que as teve oferecidas pelos inúmeros laboratórios, que pregou a não necessidade de isolamento, que criticou o uso de máscara, sádico, também proíbe a imunização aos seus subordinados, ou a publicização do ato de vacinar, em clara ofensa a todas as normas da ciência.

A cada dia surge um fato grave, para evidenciar a necessidade de aprofundar as investigações sobre a ação ou omissão do presidente no seu desiderato de matar parte do povo brasileiro. Em 1999, em um programa de televisão, o então deputado, medíocre e despreparado, arrotava a plenos pulmões que o Brasil só avançaria “fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil”.

Sim, a proposta desse militar frustrado era matar 30 mil brasileiros. Como presidente da República, ele acaba de ser responsabilizado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pela morte, por omissão, de pelo menos 150 mil brasileiros, num momento em que os óbitos, resultantes direta e indiretamente da irresponsabilidade dele, chegam ao alarmante número de 400 mil pessoas.

Mas a prepotência dos grupos de apoio ao governo segue protagonizando cenas de terror explícito. O uso indiscriminado da Lei de Segurança Nacional, com o intuito evidente de perseguir intelectuais, jornalistas e estudantes é uma das partes visíveis do ataque fascista, à luz do dia, como estratégia para amedrontar os que ousarem criticar os abusos.

Parece evidente a reação orquestrada pelos apoiadores do presidente Bolsonaro para impedir que ocorra o impeachment ou o afastamento por crime comum. Isto sem considerar o silêncio sufocante que vem do Tribunal Superior Eleitoral sobre o processo, que se espera ser logo concluído.

Essa reação do governo, desorganizada e até infantil, parece chegar a um limite de máxima tensão. A criação da CPI da Covid desestabilizou de vez as hostes governistas. O próprio governo fez um levantamento dos possíveis caminhos a serem investigados, como num reconhecimento prévio de inúmeros crimes e ilegalidades. Uma espécie de delação não premiada para impedir certos depoimentos. Ou, talvez, uma tentativa de desvio de foco de alguns senadores, que o Palácio achava serem simples linhas auxiliares do Planalto. O desvio de foco, a princípio, atrapalhou e ditou os rumos a serem seguidos. Existe a máxima de um velho político mineiro: “Eu vou até a beira da cova, segurando a alça do caixão, mas não pulo dentro”.

O que vislumbramos é uma CPI que se inicia com material para preparar o relatório final. E claro, os investigados, via defesa técnica e apoios políticos, esmeram-se em manter a investigação o mais distante possível de certa família que ocupa a “casa de vidro”.

É necessário que, até em solidariedade aos milhões de brasileiros que perderam um familiar, um amigo, um conhecido, estejamos atentos. Há uma clara intenção de usar a CPI como uma cortina de fumaça, como uma maneira de investigar sem chegar ao responsável principal. Variantes nas investigações começam a encontrar outros focos. Não vamos nos dispersar. Vamos lembrar de Augusto dos Anjos, no poema O Morcego:

“A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto.”

O oxigênio que faltou nos hospitais e nos pulmões dos infectados, amontoados em UTIs lotadas, a falta de ar que fez milhares de brasileiros agonizarem em razão da ausência de planejamento do Estado gestor, toda essa agonia deve e tem que ser transformada em força para cobrar resultado dessa CPI. E que seja uma investigação rápida, como está sendo a propagação do vírus pela incúria, principalmente, do presidente da República.

O Supremo Tribunal Federal não tem faltado ao país nesse momento trágico. Quando acionado –pois o Judiciário é um poder inerte e só age se instado–, tem feito seu papel nessa conjuntura, em que o país está à deriva. O ministro Ricardo Lewandowski atuou como verdadeiro ministro da Saúde nas situações mais agudas.

Agora, os olhos do país se voltam para o Congresso Nacional, especialmente para o Senado Federal. A história será implacável na cobrança de atitude de cada senador. Aos omissos, aos canalhas e aos covardes estarão reservadas as covas rasas para abrigar suas reputações. Poderão continuar a desfrutar das pompas e galas do poder, mas a cumplicidade os marcará a ferro quente. Não esqueceremos. Haveremos de honrar cada dor que não foi extravasada em sua plenitude; cada humilhação nas filas eternas de hospitais; cada desespero por não poder dar o último abraço no ritual de partida; cada angústia sofrida em silêncio, ou em choro contido, na solidão fria das UTIs.

Senhores senadores, honrem os mandatos que o povo lhes conferiu. E lembrem-se de Bertold Brecht no poema “Os Medos do Regime”:

“À vista do poder imenso do regime, de seus campos de concentração e câmaras de tortura.
De seus nutridos policiais,
Dos juízes intimidados ou corruptos,
De seus arquivos com as listas de suspeitos
Que ocupam prédios inteiros até o teto
Seria de acreditar que ele não temeria uma palavra clara de um homem simples.

Mas este Terceiro Reich lembra
A construção do assírio Tar, aquela fortaleza poderosa que, diz a lenda, não podia ser tomada por nenhum exército,
mas que através de uma única palavra clara, pronunciada no interior,
Desfez-se em pó.”

Publicação Original: Poder 360

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